Athena Psicologia

Já ao fim da sessão, o analisando se levanta e vai em direção a um outro cômodo da casa e, com sua câmera, centraliza em um recorte colado em um painel de avisos:

Ao lê-lo, diz que os tercetos merecem destaque. Daremos o destaque aqui para pensar questões referidas a transferência, um dos conceitos fundamentais da psicanálise. Contudo, é provável que esse conceito venha atravessado por outros.

Em “A Dinâmica da transferência” (1912), Freud mostra através de suas observações que parte das pulsões que determinam a vida amorosa se dirigem para a realidade, enquanto uma outra porção, separada da realidade, se expande na fantasia permanecendo inconsciente. A figura do analista então, se mantém em prontidão para o investimento dessa outra parte. Dois anos depois a esta publicação, em “Recordar, repetir e elaborar” (1914), é dado uma ideia a mais à noção de
transferência. Esse texto mostra que a transferência é uma parcela da repetição. A repetição em transferência diz respeito à maneira em que o analisante se enquadra e enquadra o outro, sendo a relação analítica a inclusão do analista somada a essas séries de relações anteriores. Freud irá dizer que a partir dessa compreensão é comum o analista vir a ocupar determinados lugares como de pai,
mãe, irmão. Assim, o analisante, na presença do analista, transfere algo de uma realidade inconsciente, para o analista.


Com isso já podemos fazer algumas considerações a respeito da transferência junto ao poema de Vicente de Carvalho. Somente o fato do poema ter sido dado em sessão, já nos pode dizer algo da transferência. Um certo endereçamento dessa parcela que não teve seu destino dirigido para a realidade, se manifesta nesse outro tipo de realidade que não acontece através dos fatos. É interessante que esse analisando nutre um engajamento valioso com a música, inclusive apresentando suas composições em sessão. Essas apresentações passam pela escuta analítica longe do intuito em comunicar fatos, mas sim em evidenciar algo de uma outra realidade. Dessa maneira, tanto a música quanto o poema estão valendo para compor um arranjo que drible o recalque que seria a manutenção dessa outra realidade afastada da consciência (Freud, 1915).


A suposição que o poeta se refere para falar sobre a felicidade cabe ao pensar na
transferência, no sentido que ela também é suposta. Supõe-se algo daquele analista escolhido, mesmo não sabendo o porquê dessa escolha, pois se trata de um processo inconsciente. E é devido a esse lugar de não saber que se deposita, ou melhor, transfere, essas repetições vividas das histórias desses afetos. E pode-se dizer que por essa escolha, em um novo encontro em que esses afetos são revividos, a transferência vai se arranjando, vai encontrando seus versos, suas rimas.


Por outro lado, nem tudo desse encontro será de encontro. Apesar de existirem algumas recomendações ao trabalho analítico (Freud, 1913) que ambientam as condições para esse encontro, Freud deixa claro que elas não decretam um rigor do qual tais recomendações passassem a ser tomadas como regras para o trabalho analítico. Dessa forma, no que se arranja dos versos da transferência não há uma obrigatoriedade quanto sua métrica. Assim, é possível vislumbrar os
desencontros desse encontro. Percebe que quando o poeta atribui a suposição e, em seguida, o não alcance da felicidade penso que isso se dá de maneira análoga a transferência, na medida em que o que se supõe não alcança a pessoa do analista – ou pelo menos não deveria, levando em consideração que há um pagamento com que o analista banca, (a)pagando o seu eu (Lacan, 1958).


Por fim, e em resumo, o movimento de se deslocar de um cômodo para outro, esse em que a poesia é centralizada, nos indica sobre a própria passagem dos afetos de uma relação a outra e que, em uma análise, acaba tendo como destino a figura do analista. Pôr onde não está confere um tom propício a transferência, e é por ela que a escuta analítica se adentra em outro cômodos, não tão cômodos.

Texto produzido por Paulo Costa




Paulo Costa
CRP 01/20383
(61) 9 9916-9162
Psicólogo, especialista em Teorias Psicanalíticas e praticante da clínica psicanalítica.


Referências:
Lacan, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Freud, S. (1912). A Dinâmica da Transferência. In: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia relatado em autobiografia (“O Caso Schreber”), artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913) – Obras completas, vol. 10. Tradução Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras.

_. (1913). O Início do Tratamento. In: Observações psicanalíticas sobre um caso de
paranóia relatado em autobiografia (“O Caso Schreber”), artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913) – Obras completas, vol. 10. Tradução Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras.

_. (1914). Recordar, repetir e elaborar. In: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia relatado em autobiografia (“O Caso Schreber”), artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913) – Obras completas, vol. 10. Tradução Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras.

_. (1915). A repressão. In: Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) – Obras completas, vol. 12. Tradução Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras.